Era noite. Tarde da noite.
Eu estava assistindo a um filme na televisão quando começou a chover. Corri para fechar as janelas da casa e, quando fechei a última, parei para ver a chuva caindo. Era uma chuva forte, tão forte que seu barulho parecia o de uma cachoeira. Podia-se ver os pingos caindo grossos, iluminados pela luz amarelada que vinha dos combustores. Fiquei ali parado por um tempo, com o rosto encostado no vidro, observando, sem pensar em nada. Apenas olhando aquela cena tão comum. E fui tomado por uma sensação boa. O mundo caía lá fora, mas eu estava protegido. A sensação acolhedora da proteção.
Ainda me deliciava com aquela sensação agradável quando um pensamento me ocorreu. Ri de mim mesmo, mas o pensamento riu mais alto, e, antes que eu percebesse, ele se tornou uma vontade. A princípio fiquei na dúvida, mas não encontrei nenhum argumento que me contradissesse. Bem, na verdade encontrei vários, mas nenhum que demovesse minha vontade que, naquela altura, já era um desejo.
Calcei meus sapatos, abri a porta e simplesmente saí andando pela rua.
As gotas caíam frias e pesadas sobre mim, molhando meus cabelos e escorrendo pelo meu rosto. Encharcando minhas roupas. E enquanto eu andava, eu pensava. Era ótimo andar na chuva. Sem pressa. Sem destino. Apenas andar na chuva. Devagar. Sozinho. Era como se eu pudesse distorcer a própria percepção do tempo. Divertia-me pisando nas poças, uma a uma e, quando não as havia, olhava para a escuridão da noite sentindo a chuva batendo na minha cara. Se a sensação que eu experimentara na minha casa era boa, a sensação de andar a esmo numa noite de chuva era infinitamente melhor. Se antes eu experimentara o conforto, agora eu experimentava a liberdade.
Pensei: Talvez a liberdade seja isso. Sair da proteção e enfrentar o que aparentemente nos ameaça. Talvez não exista liberdade na proteção, nem proteção na liberdade. E esse pensamento me assustou. Olhei a minha volta. A rua estava deserta. Eu estava longe de casa, molhado e com frio. E senti medo. A liberdade também pode se tornar uma ameaça. E, se a liberdade é enfrentar uma ameaça, enfrentar a ameaça da liberdade é um caminho sem volta. Talvez a loucura seja isso. Não sei dizer, eu fui longe, mas não fui em frente. Apenas virei e tomei o rumo de casa.
A volta foi bem mais longa do que a ida. Eu perdera o poder de distorcer o tempo. Tremia de frio quando abri a porta de casa. Tirei as roupas molhadas que logo formaram uma poça no chão. E entrei, com a alma e o corpo nus, num longo banho fervente. Quando a água me aqueceu, voltei a rir de mim mesmo. Que maluco! Pensei. Saí do banho, me enxuguei, coloquei um pijama e entrei debaixo das cobertas. Lá fora a chuva continuava caindo. Mas a sensação de conforto voltara.
Antes de dormir peguei esse papel e comecei a escrever esse texto. Queria contar minha experiência de confrontar o conforto. Queria falar sobre a liberdade. Mas no fim acho que acabei mostrando para mim mesmo que eu sou covarde demais para ser louco. O que convenhamos, pode ser uma benção.
Ainda é noite, tarde da noite. Mas a chuva parou lá fora.